Depois dos veículos flex, que usam etanol, e das companhias aéreas, que apostam no SAF, o transporte marítimo também recorre a combustíveis sustentáveis para reduzir suas emissões de gases poluentes.
Na verdade, esse setor tem urgência nessa busca, afinal responde por 3% das emissões globais de gases geradores do efeito estufa.
Navios, principalmente embarcações de grande porte, como petroleiros e porta contêineres, usam o bunker oil, ou óleo combustível. Trata-se de um resíduo pesado do processo de refino do petróleo, caracterizado por sua alta viscosidade e teor de enxofre.
Por sua vez, a escolha desse combustível não se deve só pela sua abundante disponibilidade, mas também ao seu custo, que é relativamente baixo em comparação com alternativas mais limpas.
Em linha com essa situação, a agência da ONU que cuida da redução da poluição marinha e atmosférica, a Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) garantiu, em evento realizado em março deste ano, o objetivo de acelerar a transição para que o transporte marítimo global zere suas emissões até 2050.
É aí que entra o etanol.
Ele surge no radar como combustível renovável para ajudar embarcações na corrida para zerar as emissões.
Opções além do etanol
Vale destacar que instituições ligadas ao transporte marítimo apostam em várias soluções.
Uma delas, já empregada, é o gás natural liquefeito (GNL), que emite menos gases ante o bunker oil.
Há também produtos de baixa emissão lançados mundo afora.
É o caso, por exemplo, do Neste Marine 0.1 Co-Processed, lançado em 2023 na Suécia pela Neste.
Esse combustível mistura matérias-primas fósseis com renováveis no processo de refino e, assim, segundo a empresa, pode fornecer composição semelhante a dos combustíveis padrão e manter o desempenho, mas com menos emissões.
Tem aí um ponto importante desse combustível: ele é o que o setor chama de drop-in, ou seja, pode facilmente substituir os combustíveis convencionais sem a necessidade de modificações nas embarcações.
Biometanol
Outra solução é o metanol, também conhecido como álcool metílico. É um composto químico leve e, assim, fácil de transportar e armazenar.
A matéria-principal é o gás natural, relacionado diretamente às emissões de gases de efeito estufa.
Vai daí que chega o metanol verde, dividido em dois tipos, ambos com baixa pegada de emissões.
Tem o e-metanol, produzido a partir do hidrogênio produzido com eletricidade renovável (hidrogênio verde) e do dióxido de carbono captura.
E tem o biometanol, produzido a partir da gaseificação de fontes sustentáveis de biomassa, como a cana-de-açúcar e resíduos de gado, florestais e urbanos.
Cana como fonte
Seja para o e-metanol ou para o biometanol, a cana-de-açúcar pode entrar como matéria-prima.
No caso do primeiro, para gerar hidrogênio verde será preciso eletricidade renovável e, assim, a bioeletricidade (geração de eletricidade em termelétricas canavieiras) está pronta para atender.
Já no caso do biometanol, a biomassa canavieira também está disponível para atuar como matéria-prima.
Biocombustíveis são estratégicos já no curto prazo
A transição energética para o transporte marítimo corre contra o tempo. E, diante disso, biocombustíveis como o etanol são pra lá de estratégicos.
Mais: essa estratégia se dá no curto prazo, ou seja, nessa década.
É o que afirma Mahatma Ramos dos Santos, diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (INEEP), em entrevista ao JornalCana.
JornalCana: O etanol de cana ou de milho pode também ser combustível de transporte marítimo?
Mahatma Ramos dos Santos – Sim, os biocombustíveis são uma alternativa, em especial, pensando no curto prazo (na década 2020) e com a necessidade de descarbonização imediata desse setor.
Inclusive essa ideia foi apresentada a IMO (International Maritime Organization) por alguns atores da indústria brasileira durante evento no BNDES realizado no mês de abril último. O debate é sobre a escala, preços e eficiência dele comparativamente a outros combustíveis.
JornalCana: O e-metanol a partir do Hidrogênio Verde é a aposta, mas tem custo elevado. A seu ver, o etanol pode ser adicionado como nos motores flex caso haja essa possibilidade?
Mahatma Ramos dos Santos – O e-metanol é a grande aposta da indústria de transporte marítimo para o futuro, há uma expectativa muito grande em relação às potencialidades dos combustíveis sintéticos como ele.
A aposta da Maersk, uma das maiores transportadoras globais, nessa solução é um indicativo da potencialidade.
Diversos investimentos e iniciativas são observadas nesse sentido globalmente.
O etanol, como dito, pode ser uma alternativa para essa transição de curto prazo, ou, ainda, ocupar de forma perene parte desse mercado se a indústria adotar motores flex.
JornalCana: A produção de etanol hoje é centralizada em países produtores de etanol. Como viabilizar ele logisticamente em termos de abastecimento ao transporte marítimo global?
Mahatma Ramos dos Santos – Em um mercado global e integrado há espaço para diversas rotas tecnológicas e complementaridade entre propostas de descarbonização. Assim, o etanol, com certeza, é uma delas. Os biocombustíveis são uma alternativa concreta.
Sua participação no mercado global vai depender das novas regulações e normativas que estão sendo debatidas e adotadas globalmente, capacidade de expansão da oferta e preços. Além, claro, da sua eficiência em relação a outros combustíveis.
JornalCana: A limitação de produção não é um problema?
Mahatma Ramos dos Santos – A escala pode ser um limitador no caso do etanol, sobretudo se estivermos falando em área agricultável utilizada para esse fim.
Contudo, não devemos descartar nenhuma alternativa para redução das emissões e, com certeza, vamos observar uma diversidade de novos insumos energéticos que vão competir entre si.
A transição energética será um processo longo e não linear, há espaço para os biocombustíveis nesse processo.
Potencial para etanol é imenso
A fornecedora de equipamentos navais Wärtsilä, com sede na Finlândia, aposta no etanol.
“O futuro é multicombustível e a Wärtsilä está auxiliando os operadores de navios a buscarem combustíveis verdes, mais comerciais e tecnicamente viáveis, que auxiliem a baixar o nível de emissão de gases de efeito estufa de suas operações”, destaca a empresa em publicação.
Segue: “nesse horizonte, existe um potencial imenso para o etanol. A Wärtsilä vem desenvolvendo tecnologias de motores flexíveis e sistemas auxiliares para acelerar a aplicação de combustíveis sustentáveis na indústria de navegação.”
“Atualmente, 99,5% da frota mundial em operação está instalada com motores convencionais projetados para serem movidos a combustíveis derivados de petróleo, mas as projeções apontam para um potencial de consumo que pode atingir 32 milhões de metros cúbicos por ano de etanol até 2030.”
“Os combustíveis precisam ser sustentáveis! A Wärtsilä tem a tecnologia certa para que a indústria marítima possa vencer os desafios técnicos e alcançar esta completa migração”, finaliza.
Acordo acelera uso de etanol
Desde outubro de 2023, a finlandesa Wärtsilä e a Raízen, joint-venture entre Cosan e Shell, mantêm acordo para acelerar a sustentabilidade no setor marítimo com navios movidos a etanol.
Saiba destaques deste acordo:
O acordo de descarbonização visa explorar o uso do etanol como combustível marítimo para reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e avançar no desenvolvimento da primeira embarcação movida a etanol
Ao estudar a aplicação do etanol como combustível marítimo, a nova iniciativa visa reduzir as emissões de GEE, oferecer novas opções aos clientes que buscam alternativas de combustível sustentáveis e contribuir substancialmente para a discussão da transição energética no setor globalmente.
No âmbito de seu programa de descarbonização de frota, a Wärtsilä alcançou uma série de marcos significativos para trazer novas soluções sustentáveis ao mercado, aumentar a eficiência de motores e apoiar a descarbonização de operações marítimas.
Ao conduzir testes em sua tecnologia usando etanol como combustível principal nos laboratórios de motores Wärtsilä Sustainable Fuels e apoiar a Raízen em discussões com projetistas e armadores de navios, e também sobre regulamentações e requisitos de conformidade para o uso de etanol celulósico como combustível, o acordo ajuda a impulsionar a integração de soluções de energia limpa no setor marítimo.
A substituição de combustíveis fósseis por etanol produzido de forma sustentável no transporte marítimo pode reduzir as emissões de CO2 em até 80% em uma rota padrão do Brasil para a Europa, de acordo com estudos preliminares da Raízen.
O etanol tem o potencial de ser uma solução viável para descarbonizar o setor, uma vez que proporciona maior flexibilidade e opcionalidade à medida que a indústria avança em direção a uma combinação de alternativas de combustíveis com menores emissões.
BNDES estuda aportes
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) estuda ferramentas financeiras para investir na descarbonização do setor marítimo.
“Cerca de 90% de todo o transporte de mercadorias do planeta é feito por navios. Eles terão multas se não descarbonizar o combustível”, relata o presidente do Banco, Aloizio Mercadante, em evento da instituição em maio.
“E temos um problema logístico para chegar, por exemplo, à China. Nosso navio demora muito mais tempo do que, por exemplo, o da Austrália. Com isso, podemos perder competitividade. E o BNDES está debruçado sobre isso”, explicou.
Uma das ferramentas que o país possui para fomentar essa transição energética é o Fundo da Marinha Mercante, que existe desde 1958 e é voltado para promover o desenvolvimento da marinha mercante e da indústria naval nacional. São vários gestores, mas o BNDES responde por 75%.
Segundo Mercadante, por meio do fundo, estão em processo de contratação R$ 6,6 bilhões, envolvendo balsas, rebocadores, empurradores para transporte de grãos e minério, entre outras embarcações.
“No curto prazo, para adaptar os navios, a melhor resposta é o etanol e o metanol, dos quais o Brasil é o segundo maior produtor. Nós temos a produção de etanol mais evoluída, que é o de segunda geração. É o mais eficiente, o que mais descarboniza. Podemos entrar nesse mercado”.
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